Programas de (des) conformidade
A ciência econômica afirma que uma das principais características de um sistema tributário ideal é a neutralidade. Isso significa que a instituição ou a majoração de tributos ao menos em tese não deveria interferir na atividade econômica, nas decisões dos investidores e no funcionamento dos mercados.
A Constituição Federal há 30 anos firmou o atual Pacto Federativo (arts. 146 a 162), que constantemente é atacado pelos próprios Estados, seja por meio da denominada guerra fiscal, seja pela instituição unilateral de normas tributárias que frequentemente afetam principalmente os contribuintes com atuação nacional.
Partindo dessa unidade na diversidade, a CF estabeleceu como princípio a livre concorrência (art. 170), pressupondo também a necessária observância, pelos entes federados, dos seus ditames que balizam a capacidade normativa das entidades estatais subnacionais. O mercado, assim, é um patrimônio nacional.
Haverá intervenção inapropriada no mercado pelo desincentivo à aquisição de produtos de outros Estados.
Sob o bom pretexto de premiar os bons contribuintes, o que é louvável, o Estado de São Paulo instituiu o programa batizado de "nos conformes", por meio da Lei Complementar nº 1.320/18. Exemplo, inclusive, que quer ser copiado também pela Receita Federal. "By the way", a norma submetida a consulta pública pela RFB estranhamente traz um "porrete" para bater no contribuinte "C", em um programa de "estímulo à conformidade". O hábito do cachimbo...
Prosseguindo, poucos têm percebido um dos mecanismos da lei local que intervém negativamente em nível nacional, em detrimento principalmente daqueles Estados menos desenvolvidos.
A Lei cria, em linhas gerais, regras discriminatórias positivas para aqueles contribuintes que estiverem adimplentes para com as suas obrigações, de acordo com uma gradação específica.
O artigo 10 dessa lei permite que São Paulo poderá estabelecer procedimento próprio para cadastramento de fornecedores que sejam contribuintes do ICMS estabelecidos em outros Estados para transmissão eletrônica de informações fiscais ao fisco paulista. Afirma ao final que no caso de ausência dessas informações do fornecedor, será adotada automaticamente a classificação na categoria "D". Norma ainda não regulamentada, por ora.
Sucede que o art. 5º, III nos diz que a classificação do contribuinte paulista considerará o perfil dos seus fornecedores, conforme enquadramento nas mesmas categorias e pelos mesmos critérios de classificação previstos na lei, e o art. 16, ao determinar as contrapartidas aos contribuintes, se lhes concederá algumas "facilidades", tais como a) autorização para pagamento do ICMS-ST de mercadoria oriunda de outra unidade federada e b) autorização para pagamento do ICMS-Importação, ambos mediante compensação em conta gráfica; c) renovação de regimes especiais observando-se procedimentos simplificados; d) transferência de créditos acumulados para empresas não interdependentes, dentre outros.
Assim, empresas paulistas que adquirirem produtos de outros Estados de empresas não cadastradas, ou que não transmitam suas informações, terão seus "rankings" afetados por adquirirem de fornecedores que não se enquadrem nas regras determinadas pelo fisco paulista.
Esqueceram-se os nossos legisladores que os arts. 152 e 170 da Constituição Federal vedam qualquer tipo de discriminação de produtos provenientes de outros Estados Federados e assim garantem a livre concorrência. Quem vende o produto é o fornecedor, por óbvio. A norma afeta subjetivamente o vendedor do produto.
Ora, nos tempos atuais, estão cada dia mais presentes os "oligopsônios", denominação da ciência econômica para os mercados nos quais a demanda controla a sua própria oferta, por serem mais concentrados que o segmento anterior da cadeia. Casos clássicos, os grandes varejistas, as grandes redes de eletrodomésticos.
Assim, respondendo São Paulo por aproximadamente 40% do PIB, claramente haverá uma intervenção inapropriada no mercado nacional pelo desincentivo à aquisição de produtos de outros Estados, e pelo incentivo a que se adquiram produtos locais, o que pelo seu próprio volume poderá afetar a competitividade de fabricantes de outros Estados.
Logo, caso implementada como está, tal norma será flagrantemente discriminatória, abertamente irá de encontro aos mencionados artigos, intervirá no livre funcionamento do mercado, e afrontará diretamente a Carta Maior, podendo ser contestada diretamente pelos outros Estados no âmbito do STF.
Esperamos que os legisladores tenham o bom senso de evitar a introdução de mais uma indesejada insegurança jurídica - dentre as centenas que prejudicam a livre iniciativa no Brasil e afetam negativamente a competitividade da nossa economia - e proteja o já combalido Pacto Federativo do impacto de uma norma administrativo-tributária desguarnecida da necessária neutralidade econômica.
Gileno Barreto é advogado, sócio do Barreto, Cunha & Rigo Advogados, MBA e mestrando em Direito Tributário Internacional, ex-conselheiro do Carf (2005-2014).
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