Modelo pioneiro da CCR e posto em xeque
Renato Vale chegou ao prédio do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) no dia 19 de fevereiro 45 minutos antes da hora marcada. Prestaria mais um depoimento no inquérito civil que investiga superfaturamento de contratos para abastecer caixa dois destinado a políticos, esquema comandado por ele na presidência da CCR, maior grupo de concessão de infraestrutura do país. Às 12h45 parou na portaria e, em seguida, subiu para o sétimo andar do edifício nº 115 da Rua Riachuelo, esquina com a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, na região central da cidade, onde fica a promotoria do Patrimônio Público e Social.
A ida de Vale à sede do MP-SP em fevereiro, a terceira desde o início da investigação, teve o objetivo de complementar e esclarecer inconsistências de depoimentos colhidos até aqui na investigação, iniciada a partir da delação do doleiro Adir Assad no âmbito da Operação Lava-Jato. Em novembro, a companhia assinou com o MP-SP o que é conhecido como "termo de autocomposição", espécie de leniência no âmbito estadual.
O conteúdo que integra o acordo deriva dos depoimentos dos envolvidos em esquemas de caixa dois praticados pela empresa em São Paulo entre 2009 e 2013 com os quais levantou o equivalente a R$ 44,6 milhões em valores atuais. Mas a autocomposição ainda precisa ser homologada pela Justiça. Para tanto, a CCR tem de provar para o MP-SP a veracidade das revelações. Se o órgão não se convencer, nada feito. O acordo poderá ser rompido.
Fora isso, a Rodonorte, controlada da CCR, assinou ontem um acordo de leniência com a força-tarefa da Operação Lava-Jato, reconhecendo o pagamento de propinas em troca de modificações contratuais que a beneficiaram. A empresa se comprometeu a pagar R$ 750 milhões, entre multa, execução de obras e redução de valores de pedágios.
O caso deve ter efeitos em São Paulo, onde um novo termo de autocomposição poderá ser fechado ainda neste ano, conforme apurou o Valor.
As revelações que estão aparecendo colocam em xeque o modelo de governança corporativa de uma empresa que há muito foi eleita pelo mercado uma das melhores empresas da bolsa de valores. Não à toa.
Logo depois de abrir o capital, em 2002, a CCR foi a primeira companhia a aderir ao Novo Mercado, o segmento da bolsa brasileira que "se tornou o padrão de transparência e governança exigido pelos investidores para as novas aberturas de capital", conforme a descrição da própria B3. Ao desbravar terreno onde só são aceitas empresas empenhadas espontaneamente a adotar práticas de governança rigorosas, a CCR se tornou espécie de modelo a ser seguido. A empresa era uma história improvável de padrão elevado de gestão empresarial. Criada por cinco empreiteiras, um setor há muito conhecido por suas relações heterodoxas com o poder público, eram pequenas as chances de ser criado ali um modelo de boa governança.
A companhia, fundada em 1999, era considerada uma referência de padrão elevado de gestão
A holding foi criada em 1999 para administrar as concessões rodoviárias de seus acionistas. Foi fundada por Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Odebrecht, SVE Participações e Serveng-Civilsan. Hoje, é controlada por Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Soares Penido. A CCR apostou na expansão do portfólio e na diversificação dos ativos. Reúne hoje mais de 20 concessões de rodovias, mobilidade urbana e aeroportos, com valor de mercado de R$ 29 bilhões.
A listagem da CCR no Novo Mercado foi encarada como um aceno de que suas práticas seriam distantes das empregadas no setor em que suas controladoras atuam. A própria CCR não poupou esforços para reforçar essa ideia com medidas práticas, e foi reconhecida por isso. Em 2005, foi premiada pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) na categoria empresas listadas. Na Fundação Dom Cabral, patrocinou um núcleo de estudos sobre governança de 2006 a 2010 que recebeu o nome de Núcleo CCR de Governança Corporativa. Até hoje, a companhia é uma das mantenedoras do IBGC.
Justamente porque a CCR se tornou referência de governança, a crise da empresa não é só dela e coloca em questão o seu modelo. A análise que especialistas fazem é que a CCR de fato tinha uma estrutura de governança avançada para os padrões brasileiros. Mas a aderência à forma não é suficiente. "O problema da CCR não estava no aspecto estrutural da governança, mas sim no funcionamento do modelo e na mentalidade de suas lideranças", diz Alexandre Di Miceli, especialista em governança empresarial e professor da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap). Quando a alta administração da companhia está disposta a praticar atos ilícitos e não se compromete com a ética do negócio, não há estrutura capaz de coibir malfeitos, diz ele.
Para Di Miceli, agentes do mercado - investidores, analistas, órgãos que representam e fiscalizam as companhias de capital aberto - fizeram "vista grossa" sobre o caso, uma vez que os fatos, ainda que ilícitos, não provocaram grande impacto financeiro na companhia. "Infelizmente, o mercado não pune ou premia pela ética. Ele pune ou premia pelo lucro", diz o especialista. Para ele, a empresa deveria ser punida ou, ao menos, questionada por entidades de mercado e pela B3 justamente porque se vendeu como exemplo.
Questionado, o IBGC informou em nota que "como guardião das melhores práticas" também tem seu próprio sistema de governança" e que "havendo indícios de inobservância dos valores, descumprimentos dos princípios e normas" é aberto procedimento disciplinar que pode resultar na aplicação de penalidades. A B3 informou que "a punição de práticas ilícitas compete à Justiça e não está prevista no regulamento do Novo Mercado". Mas afirmou que, ainda assim, "acompanha ativamente as companhias no cumprimento das regras previstas no regulamento e pode, se necessário, aplicar sanções caso se comprove o descumprimento das regras". O assunto causa desconforto. A reportagem procurou analistas de bancos (dos dez que a acompanham regularmente, só dois falaram na condição de anonimato), entidades de governança e ex-conselheiros. A maioria não quis comentar o caso.
Empresa diz que vem adotando medidas para aperfeiçoamento da política de governança e de gestão de riscos
Um analista conta que no início da Operação Lava-Jato, em 2014, havia muita especulação sobre o possível envolvimento da CCR no escândalo de corrupção depois que as sócias Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa foram atingidas. Isso não aconteceu, o que acabou reforçando a crença numa separação entre as práticas usadas pelos controladores descobertas na Lava-Jato e o comando da CCR. Também por ser o ativo mais líquido de seus controladores, a ideia de que a CCR estava blindada até por iniciativa deles próprios ganhou cada vez mais força. Por isso, a revelação de caixa dois no fim de 2018 "não estava no preço", expressão favorita do mercado financeiro para as surpresas que mexem com as cotações. Ainda assim, o acordo com o MP-SP, segundo esse analista, "conteve a sangria", pois, pelo que se sabe até agora, os erros foram pontuais e focados em poucos executivos.
Depois de os casos virem à tona, a CCR criou um comitê independente em março de 2018 para apurar fatos reportados pela imprensa. A empresa também fez mudanças na estrutura de governança. A principal delas foi a criação de uma vice-presidência de compliance, que passou a se reportar ao conselho de administração. De 2015, quando foi criada, até o fim de 2018, a área de compliance da CCR se reportava diretamente à presidência da companhia - um fator que, segundo especialistas, dificultou que qualquer ato ilícito fosse coibido, uma vez que quem cuidava dos malfeitos era o próprio presidente.
"A área de compliance deve ter autonomia e independência, inclusive financeira, para poder ser um instrumento de gestão de riscos, de investigar o próprio presidente se fosse o caso", diz Rodrigo Bertoccelli, advogado e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial. "Ela deve responder para um órgão plural, seja o comitê de ética ou o conselho de administração. Nunca para uma pessoa só."
O grande desafio da empresa agora, segundo Di Miceli, da Fecap, não é mais mostrar que cumpre regras à risca, mas apresentar aos investidores mudanças estruturais. "A reformulação da empresa, em casos como esse, tem de ser completa e não apenas na área de compliance. Isso também deveria incluir mudanças nas diretorias e em boa parte do conselho de administração", disse.
A CCR informou, em nota ao Valor, que desde que tomou conhecimento das denúncias pela imprensa, "vem adotando diversas medidas para aperfeiçoamento da política de governança, de código de conduta, estrutura organizacional das diretorias executivas e corporativas e gestão de riscos". A empresa diz ainda que "sempre buscou um alto nível de governança, o que foi reconhecido ao longo de sua trajetória" e que "ao se deparar com uma situação que testou a governança existente", reforçou ainda mais essa visão. Sobre a criação de caixa dois, a companhia ressaltou que todos os termos e condições do acordo são sigilosos, conforme a legislação que rege o termo de autocomposição.
FONTE Valor